As 4 formas de composição do mundo

Autor: Raúl Selva

Tradutora: Rafaella

A antropologia é uma disciplina social que pode-se considerar ter surgido no século XIX, com os primeiros modelos evolucionistas de Morgan e Tylor. Desde então, passou por uma evolução através do particularismo histórico, funcionalismo e estruturalismo até as escolas mais contemporâneas. A virada ontológica, apesar de controversa, é uma orientação teórica muito nova que pode lançar alguma luz sobre outras formas possíveis de se relacionar com o meio ambiente, por meio do conhecimento das ontologias dos povos indígenas. O objetivo principal deste artigo é apresentar com clareza essa escola antropológica e torná-la mais fácil para o leitor compreendê-la, para que questione suas próprias categorias de pensamento e descubra outras possibilidades de se relacionar com o meio ambiente.

O desenvolvimento da virada ontológica encontra uma base importante no perspectivismo e no multiculturalismo da América indígena. O perspectivismo, como o próprio nome sugere, pressupõe que a percepção da realidade varia de acordo com cada perspectiva. Nesse contexto, isso significaria que todo animal, planta (em suma, qualquer ser não humano), teria, de fato, sua própria visão de mundo, tão válida quanto a nossa, mas diferente. Essa forma de entender os outros seres lhes confere, no universo simbólico, um direito maior de serem respeitados, pois os aproxima do ser humano. Como apreciam o mundo (ainda que de forma diferente), são mais complexos.

E como essa abordagem perspectivista pode se relacionar com o multinaturalismo? A sociedade ocidental compreende perfeitamente a essência multicultural do mundo. Os humanos, por natureza, criaram uma enorme variedade de culturas, diferentes umas das outras. Portanto, o multinaturalismo significaria que também pode haver uma variedade inimaginável de mundos, de naturezas. Como o mundo mudaria dependeria dos olhos com que você olha para ele, ou mais especificamente, do corpo com o qual você se relaciona com ele. Por exemplo, como um pássaro tem asas para voar, sua percepção do que é o topo de uma árvore é muito diferente da nossa. Isso poderia explicar qualquer comportamento animal que possa parecer absurdo. É simplesmente uma forma de se relacionar com um ambiente completamente diferente daquele que vemos.

Mas indo além, a virada ontológica foi desenvolvida como extensão e aprofundamento desses conceitos. O conceito de ontologia vem do grego antigo [ontos] entidade e [logos] conhecimento. A virada ontológica na antropologia é o foco no estudo da relação dos seres humanos com outros seres não-humanos. A natureza é, afinal, todas as outras entidades (também seres não vivos) que compartilham conosco esse lugar chamado mundo. Se a relação de uma sociedade muda em relação aos demais seres, toda a sua visão do meio ambiente muda também. Philippe Descola, antropólogo francês, tentou delinear todas as formas possíveis de composição do mundo em quatro tipos: naturalismo, animismo, totemismo e analogismo.

O naturalismo é o mais fácil de entender, pois é o da sociedade capitalista ocidental. Como explica o diagrama abaixo, nas sociedades naturalistas a continuidade dos seres estaria apenas na matéria, nas características físicas. A teoria atômica da matéria (a matéria não é destruída ou criada, apenas transformada) é um exemplo disso acreditando na continuidade da matéria. Em vez disso, há uma descontinuidade nas interioridades (ou espíritos). Nessas sociedades, a crença na reencarnação não existe. Quando o ser morre, sua alma desaparece (em posições ateístas) ou transcende, mas não reencarna em outro corpo.

Nas sociedades totemistas, existe a ideia de que as propriedades dos corpos podem ser transferidas.

As sociedades animistas consideram que há uma diferença na fisicalidade dos seres. Quando um corpo se perde após a morte, é a matéria que desaparece. O nascimento é a criação da matéria. Quanto às interioridades, ou aos espíritos, nunca desaparecem ou saem do mundo, reencarnam em outros corpos. Portanto, as sociedades animistas respeitam muito os outros seres porque vêem neles seus ancestrais. As sociedades totemistas acrescentariam a essa cosmologia a ideia de que as propriedades dos corpos podem ser transferidas. Como Como foi explicado anteriormente, nas concepções multinaturalistas, cada corpo confere determinadas capacidades e perspectivas ao ser. Assim, as sociedades totemistas, por meio do uso de totens e outras estratégias de “incorporação", aspiram obter certas características de outros seres fisicamente diferentes. Por fim, as sociedades analogistas classificam todas as entidades do mundo em uma multiplicidade de essências, formas e substâncias que são autônomas umas das outras e não têm interdependência. A partir daí, é possível criar uma hierarquia entre todos os seres. Esses quatro modos de composição do mundo podem sofrer, é claro, transformações e hibridizações, que trariam uma multiplicidade quase infinita de ontologias diferentes.

GRANDES DESCONTINUIDADESPEQUENAS DESCONTINUIDADES
ANIMISMO
Semelhanças de interioridade e continuidade dos espíritos.    
Diferença de fisicalidade.
TOTENISMO

Semelhanças de interioridade     
Semelhanças de fisicalidade.
NATURALISMO    

Diferença de interioridades.
Descontinuidade dos espíritos.      
Semelhanças de fisicalidade.
Continuidade do assunto.
ANALOGISMO 
   
Diferença de interioridade      
Diferença de fisicalidade.
Esquema das 4 formas de composição do mundo descritas por Descola.

Concluindo, o que essa perspectiva pode nos trazer é abrir nossas mentes para diferentes formas de entender o meio ambiente. É claro que essa não é uma decisão voluntária que podemos tomar, pois todos somos determinados por nossa cultura. Mas conhecer as outras ontologias pode dar uma grande contribuição para respeitar os povos tradicionais e aprender com eles. Aos poucos, é possível transformar nossa sociedade em uma sociedade que respeite mais o meio ambiente e conviva com ele de forma sustentável.

Bibliografia:

Alexiades, M. (2018). La antropología ambiental: una visión desde el Antropoceno. In: Santamarina, B. & Beltran, O. (Eds.), Antropología Ambiental: Conocimientos y Prácticas Locales a las Puertas del Antropoceno (pp. 7-70). Barcelona: Icaria. ISBN 978-84-9888-838-6.

Descola, P. (2014). Modes of being and forms of predication. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 4 (1), 271-280.Holbraad, M. & Pedersen, M.A. (2017). The Ontological Turn. Cambridge University Press.

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